“Muita coisa importante falta nome”. Quem despontou tal frase foi Riobaldo, ex-jagunço que relembra suas lutas, seus medos e seu amor reprimido em Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, clássico da literatura mineira. Para outras coisas, no entanto, os nomes sobram. Uma delas, infelizmente, é a violência, que tem muitas faces e estratégias.
Ao falarmos de arte popular, um termo torna-se fundamental – e, como todo conceito, aqui apresenta-se em disputa: o povo. Em A ferro e fogo, manifestamos nosso elogio à insubordinação da população brasileira a partir de suas várias urgências, causas e representações – aqui, as plurais e diversas cores e tintas, salvaguardadas pelo Museu Internacional de Arte Naïf do Brasil, apontam para o risco das generalizações. Tal termo francês, naïf, se traduzido literalmente, significa ingênuo. Nosso convite àqueles que visitam esta mostra é desconfiar desta ingenuidade e perceber em cada fatura a densidade das denúncias presentes nestas telas. Percebemos que, assim como nas revoltas populares, as tintas são um meio de mudar o mundo – confiando na arte, na memória e na representação.
A história de nosso país, o Brasil, é marcada pelas lutas nada ingênuas. São inúmeras revoluções, revoltas e conflitos que marcam os capítulos de nossas histórias. A imagem de um país pacífico, de população cordial, desfaz-se a cada dia nas telas de celulares ou páginas de jornais. Não poderia ser diferente: marcado pela violência colonial, pelo extrativismo, pelo projeto de manutenção da desigualdade e pelas discussões em torno da legitimidade de um povo frente ao monopólio dos poderes, esta história, caso fosse narrada de maneira pacífica, ignoraria a força de uma população que ousou batalhar pela sua importância, pelo seu poder.
A ferro e fogo, o título desta mostra, aparece aqui como um nome que faz as vezes de dois: “A ferro e fogo não dá / Com tanta indiferença vendo a vida passar / Tropeços e tropeços, pedras no meu caminho”. Canção do imaginário popular que marca a passagem do século XX ao XXI, estrondoso sucesso da dupla Zezé di Camargo e Luciano, a música é um fenômeno da cultura de massa: narra as mazelas que assolam a vida de um indivíduo. Da vida dura, no campo social, à vontade de ter o ser amado, na esfera pessoal. Mas esta expressão também deu título a outra obra com proximidade histórica à dupla sertaneja. Lançado em 1996, “A ferro e fogo”, livro de Warren Dean, conta a história e a devastação da Mata Atlântica brasileira. No enredo do livro, somos lembrados de que um dos primeiros atos dos portugueses, ao chegarem ao Brasil em 1500, foi abater uma árvore para construir a cruz da primeira missa. Esse gesto, considerado premonitório, teria feito, segundo o autor, a primeira vítima da ocupação europeia da Mata Atlântica, que cobria boa parte do território brasileiro. Nos cinco séculos que se seguiram, cada novo ciclo econômico de desenvolvimento do país significou mais um passo na destruição de uma floresta de um milhão de quilômetros quadrados – hoje reduzida a vestígios. Tal fato preocupa não apenas os milhões de brasileiras e brasileiros, mas toda a comunidade internacional que reconhece o protagonismo que esta terra tem para a preservação dos biomas e das condições de vida mundo afora.
A ferro e fogo firma-se como homenagem à insubordinação do povo brasileiro que, por diferentes ciclos de suas economias e histórias, exercitou suas alianças em lutas comuns – desde a manutenção de suas condições de trabalho até o respeito por seus costumes e crenças; da preservação de terras e animais até a proteção contra a violência policial. Tal verve aguerrida, presente em mentes e corações inquietos, possibilitou conquistas que mantiveram o estatuto da cultura popular – termo amplo, complexo e estigmatizado – aceso como o fogo, apesar das tentativas de domesticação da pluralidade da cultura popular brasileira – aqui aparece, sob armas, a metáfora do ferro.
Nesta exposição podemos ver juntos como as paisagens, as geografias e as representações de natureza são marcadas não apenas pela riqueza natural, mas também pela ação do humano, tornando cada vez mais complexas as ideias de natureza e cultura. Neste sentido, percebemos um país marcado pela força de seus cenários ricos em flora e fauna, mas também pelo esforço de trabalhadoras e trabalhadores em construir um país mais justo em oportunidades. As obras de arte produzidas por artistas autodidatas, que não tiveram acesso ao ensino formal em arte, muito embora tenham sido produzidas no passado, buscam dar densidade ao intenso agora. Foi no mesmo livro de Guimarães Rosa que pudemos ler: “– Um dia ainda entra em desuso matar gente”.