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Entre o céu e a terra

Por Ulisses Carrilho

O azul na bandeira brasileira representa o céu, acompanhado de estrelas que marcam cada estado deste país. O verde simboliza nossa vegetação, esta terra onde mora sua gente de carne e osso. Tal verde representa também as matas onde se escondem, à espreita, seres mitológicos. Esses espaços sagrados sustentam figuras de devoção, espaços que animam a crença. Tal sistema cultural, plural, complexo, sincrético, mestiço e difuso também é uma maneira de dar corpo à imaginação da nossa gente: uma população forjada na empresa colonial portuguesa, fruto de migrações diversas, mas também da violenta escravização das várias nações indígenas que aqui viviam e das populações africanas, de diversas origens, trazidas à força.

Entre o céu e a terra, de maneira bastante livre, abraça fato e ficção na busca de tornar este sistema ainda mais complexo. Partindo das representações pictóricas de divindades e bestas, seres mitológicos e figuras fantásticas, encontramos não apenas as crenças religiosas ou místicas: percebemos que a ideia de “um povo brasileiro” também depende de nossa crença para persistir. Fruto de uma miscigenação plural e violenta, esta ideia chamada “Brasil” persiste e repercute até hoje preconceitos e verdades propagadas em mais de cinco séculos de existência. Nesse sentido, compreendemos aqui, a partir do rico imaginário dos artistas populares salvaguardados pela coleção do Museu Internacional de Arte Naïf do Brasil paradigmas que desafiam o próprio termo naïf – do francês, ingênuo – que intitula o museu: os cultos aqui são muitos e vários, de Ogum ao Cristo, do Lobisomem ao Papai Noel, dos rituais religiosos que marcam a passagem dos anos ao culto de imagens em museus. Sim, a própria ideia de museu aqui é colocada em xeque – importam apenas as pinturas e as imagens que foram colecionadas por instituições culturais? Não teriam nossos estigmas sobre o valor de certas imagens, brutalmente, relegado artistas ao silêncio, ao esquecimento?

Entre o céu e a terra buscou um repertório rico e diverso que convoca o público a perguntar-se quais são as suas crenças: na arte, no país, nas religiões e nas doutrinas políticas. Não apenas obras de arte ou santidades são adoradas e cultuadas. O popular, aqui, propositadamente encontra o massivo: das grandes romarias aos meios de comunicação de massa, os grandes cultos são aproximados de imagens de programas de televisão, da cultura do espetáculo, do entretenimento.

Importa indagarmos nossas verdades e percebê-las em suas fragilidades, para valorizar a cultura como aquilo que ela é: uma massa informe, em franca transformação, que se faz em nossos discursos e imagens. A raiz do termo “cultura” está próxima da ideia de cultivo, daquilo que é cuidado. Se, por muito tempo, fomos levados a acreditar que existem manifestações mais importantes, especiais ou sofisticadas que outras, aqui entenderemos como há uma riqueza tecnológica nos fazeres que ainda carece de ser discutida e amplamente valorizada. Entre o céu e a terra “Não existe pecado do lado de baixo do Equador”, “Tudo é divino maravilhoso!” e “Deus é brasileiro!”, mas o Diabo também. Por meio destas imagens, podemos perceber que o desejo de estarmos juntos, reunidos em nossa liberdade de crença, é um valor gigantesco. Do sagrado ao profano, do que temos certeza ao que ainda é mistério.