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Sofrência

Por Ulisses Carrilho

O que é o amor? Esta é uma questão fundamental da humanidade desde o início da filosofia. Motivo de união e guerra nas mitologias do Oriente e do Ocidente, é considerado um sentimento ligado às divindades e ao sagrado. Na literatura, percorreu o passado e repete-se com força no presente: vivido na carne, é motivo de poesia e prosa. O desejo une não apenas os personagens das histórias narradas, é pulsão que permite a criação: instinto que move artistas em diferentes espaços e tempos na direção do prazer. Dar forma ao sentimento, àquilo que nos escapa, é tarefa impossível. Dos filósofos da Antiguidade Clássica aos artistas do nosso século, há quem insista em tentar. Descoberta na Serra da Capivara, no estado do Piauí, uma pintura rupestre com mais de 12 mil anos é a primeira representação de um beijo da qual se tem notícia. Se amamos com a alma, são os nossos corpos que sentem os arrebatadores efeitos da emoção. No samba dor de cotovelo, na bossa nova ou nas músicas de fossa, a felicidade de viver o prazer carnal ou o lamento de perder a pessoa amada gerou algumas das canções que povoam o imaginário: repetimos refrãos com o coração saindo pela boca. As dores e delícias de amar reúnem multidões que, juntas, encontram sentido em manifestar o desejo de viver uma vida compartilhada – por uma noite apenas ou até que a morte nos separe.

Termo cunhado pela primeira vez nos anos 1960, “sofrência” é utilizado por diferentes estilos musicais: do brega ao sertanejo, as canções festejam o prazer de amar, mas, sobretudo, fazem do lamento de perder uma poesia que dá sentido à vida, elaboram a falta. Fenômeno da música popular brasileira, o sertanejo é o estilo musical mais escutado no país. Desde os anos 2000, a denominação “sertanejo universitário” aponta como condições históricas, econômicas e sociais vêm transformando o interior do Brasil. Desde os anos 2010, a maior presença de mulheres neste estilo musical, como compositoras e intérpretes, é definidora para o surgimento do “feminejo” – gênero que enfatiza as mulheres em composições que tematizam o ponto de vista feminino. Em um país historicamente marcado pelo machismo, pela cultura do assédio, pela violência doméstica, pelas alarmantes taxas de feminicídio e pela desigualdade de oportunidades, tais avanços apontam para a nossa urgente atenção para as manifestações populares de cultura. O sertanejo cantado por mulheres teve como uma de suas maiores representantes a cantora Marília Mendonça (1995-2021), também conhecida como “Rainha da Sofrência”. Em uma de suas letras, “Troca de calçada”, a cantora e compositora fez história ao trazer para o eu lírico de sua canção a voz de uma trabalhadora do sexo.

Sofrência foi organizada para reunir as pinturas de artistas populares brasileiros do Museu Internacional de Arte Naïf, e também para convocar os públicos que a visitam a uma outra tarefa – talvez tão difícil quanto definir o que é o amor: qual a intenção que projetamos por trás do gesto do artista? Neste acúmulo de tinta sobre a tela, sugere-se uma cena ficcional, imaginada, ou relembro alguma boa memória? Em cenas de convívio social, ambientes domésticos e ruas das cidades, percebemos festas, flertes e trocas de olhares. Ao ver esses corpos representados, podemos questionar quem são essas figuras, para onde olham, quem ou o que desejam. Expressar o afeto é uma das razões manifestadas repetidamente por artistas de diferentes períodos da história das artes. Com esta reunião de artistas autodidatas, isso não será menos legítimo. O termo francês “naïf” significa ingênuo, que tem em uma de suas definições como “sem qualquer tipo de malícia ou pecado”. Quais serão as fantasias por trás dessas seduções? Do trovadorismo à literatura romântica alemã, passando pelas modas de viola caipira ou pelo forró pé de serra, o sentimento – seja na alma, seja no corpo – aqui não é entendido como motivo menor ou menos importante para a criação. Em Sofrência, percebemos que, apesar do medo de ficarmos sozinhos, o desejo de estar juntos é revolucionário.